Diagnóstico Precoce do Câncer Bucal: Um Tema Repleto de Desafios
O carcinoma de células escamosas é a principal neoplasia maligna que acomete a cavidade bucal. Segundo dados do GLOBOCAN 2020, foram registrados cerca de 380.000 novos casos no mundo, com aproximadamente 180.000 mortes anuais. Os países mais afetados estão localizados no Sudeste Asiático, onde o hábito de mascar noz de areca, frequentemente associado ao uso do tabaco, é uma prática comum.
No Brasil, o câncer de boca ocupa o 5º lugar entre os tipos mais frequentes em homens e o 13º entre as mulheres. O tabagismo e o consumo crônico de álcool seguem como os principais fatores de risco. Contudo, infecções pelo vírus HPV, higiene oral precária, entre outros fatores, também podem estar associados a alguns casos da doença. O trauma crônico da mucosa oral tem sido destacado como fator etiológico, mas mais estudos ainda são necessários para a confirmação dessa hipótese.
Apesar dos avanços no conhecimento clínico, epidemiológico e molecular sobre o carcinoma oral, o diagnóstico precoce da doença ainda representa um grande desafio. Como professor universitário, tenho refletido sobre esse tema e acredito que algumas observações que tenho feito ao longo dos anos podem contribuir para a formação de futuros profissionais.
É comum ensinarmos que o câncer bucal é geralmente assintomático — uma informação importante, já que a ausência de dor é frequente em lesões iniciais. No entanto, é preciso destacar que a dor também pode estar presente nas fases iniciais, o que torna a sua presença ou ausência um critério insuficiente, por si só, para descartar ou confirmar hipóteses diagnósticas.
Textos acadêmicos e artigos científicos descrevem que o câncer oral pode se manifestar de diversas formas: como nódulos, tumorações, úlceras, ou ainda lesões leucoplásicas e eritroplásicas. Essa variedade de apresentações clínicas torna essencial que o profissional esteja atento ao examinar pacientes com alterações orais. Lesões extensas costumam ser facilmente associadas a malignidades, mas lesões menores — às vezes com poucos milímetros, de superfície rugosa, erodidas, ou vermelhas — podem passar despercebidas, especialmente quando o treinamento clínico prioriza imagens de casos avançados. Essa abordagem precisa ser revista. Imagens clínicas de lesões em uma fase inicial do seu desenvolvimento são fundamentais para o treinamento de profissionais que irão atender pacientes. O diagnóstico precoce impacta não apenas na sobrevida, mas também na qualidade de vida dos pacientes após o tratamento, uma vez que a morbidade pós-cirúrgica de lesões iniciais é significativamente menor.
O processo diagnóstico é, antes de tudo, uma construção que depende da experiência clínica, da leitura crítica da literatura e da observação de casos bem documentados. Também envolve habilidades cognitivas que se desenvolvem durante a formação profissional. Por isso, mesmo que um paciente não apresente os fatores clássicos — como tabagismo ou etilismo —, não devemos descartar de forma precipitada a hipótese de carcinoma de células escamosas. Essa observação é importante pois, casos de carcinoma em pacientes não expostos aos fatores de risco clássicos tendem a ser mais agressivos.
Nas figuras 1 e 2, compartilho alguns casos diagnosticados em minha prática clínica. Curiosamente, nenhum desses pacientes se encaixava no perfil epidemiológico clássico da doença. No entanto, como as alterações clínicas não podiam ser atribuídas a fatores infecciosos ou traumáticos, optamos pela realização de biópsia incisional, que confirmou a suspeita clínica
Figura 1- Imagem clínica de um paciente com carcinoma de células escamosas de boca localizado na borda lateral esquerda língua. Observe a presença de áreas leucoeritroplásicas discretas.
Figura 2- Nesse caso, a lesão apresentava áreas eritroplásicas ou erosivas discretas.
Um outro ponto de extrema importância é entendermos os modelos de evolução da carcinogênese oral. Esses modelos explicam a diversidade clonal de células presentes mesmo em lesões leucoplásicas clinicamente homogêneas. Portanto, não faz sentido pensarmos que a biópsia incisional de uma leucoplasia irá espelhar o grau de displasia de toda a lesão ou afastará a hipótese de carcinoma invasivo. Conhecer a carcinogênese oral faz parte do conhecimento necessário para as decisões clínicas que tomamos!
Infelizmente, poucos avanços terapêuticos ocorreram nos últimos anos no tratamento do câncer de boca. Por isso, o diagnóstico precoce permanece como peça fundament na cura e na promoção da qualidade de vida após a cirurgia. Para que isso seja possível, precisamos investir na melhoria de nossas práticas pedagógicas e conscientizar nossos alunos.
Termino a minha reflexão escrevendo que Disciplinas como Patologia Bucal e Estomatologia são essenciais nos cursos de Odontologia, uma vez que o cirurgião-dentista é o profissional com maior acesso à mucosa oral durante os atendimentos de rotina.
O ensino de conteúdos teóricos e práticos de Estomatologia e Patologia Bucal deveriam ser obrigatórios em Cursos de Odontologia!
Prof. Ricardo Santiago Gomez