Lapsos da memória no diagnóstico: uma nova armadilha da mente.

Certo dia, fui impactado por uma palestra de um renomado palestrante internacional sobre doenças bucais. Autor de diversos artigos científicos, publicados em revistas importantes, me impressionou a riqueza de detalhes com que ele explanava sobre pacientes acometidos por um tipo de enfermidade rara. Algum tempo depois, tive a oportunidade de assistir a outra apresentação dele. De igual modo, com impressionante riqueza de informações, ele descreveu a mesma doença, mas, agora, citava características diferentes. Se a minha memória não falhou, posso dizer que as diferenças essenciais, entre as palestras, esbarravam em fatores predisponentes para o surgimento do processo patológico. Notei que os elementos relevantes no passado, não foram [se quer] mencionados, na última abordagem. Não posso negar que fiquei desapontado com o ocorrido, mas não dei grande importância. No entanto, recentemente, como tenho me interessando bastante sobre as questões relacionadas ao comportamento da mente e a sua influência na tomada de decisões nos diagnósticos de doenças, encontrei uma possível explicação para o caso, lendo o livro “Subliminar – Como o inconsciente influencia a nossas vidas,” de Leonard Mlodinow.

A título de ilustração, tomemos como exemplo um fato bastante conhecido e que também é mencionado no livro de Mlodinow. Certa vez, durante um evento científico, um palhaço entrou correndo, discutindo com um homem que portava uma arma. Os dois discutiram, entraram em confronto corporal e a arma disparou. Em seguida, eles se retiraram do local. Tudo ocorreu brevemente, em menos de 20 segundos.

Mas, como pessoas vestidas de palhaços é algo incomum em congressos científicos, a plateia logo percebeu que se tratava de uma representação. Em seguida, realizaram um interrogatório como parte de uma pesquisa.

De forma surpreendente, os relatos indicaram erros grosseiros sobre o traje dos atores envolvidos na encenação. Embora o homem armado não estivesse usando chapéu, diversos depoentes afirmaram terem visto esse objeto. Esse e tantos outros exemplos mostram o quão falível pode ser a nossa memória. De modo geral, a mente humana é incapaz de reter grande quantidade de detalhes com que nos deparamos diariamente. Influenciado por nossas expectativas, valores e conhecimentos prévios, o nosso cérebro preenche essas lacunas.

Em outras palavras, podemos dizer que conseguimos lembrar dos aspectos principais de um evento, mas não recordamos dos detalhes. Com isso, somos levados a criar situações que preencham, involuntariamente, as lacunas da memória. Julgamentos à parte, fato é que todas as pessoas fazem isso, até mesmo às pessoas mais bem intencionadas! O mais incrível não é essa prática, mas o resultado que dela advém; já que passamos a acreditar nas lembranças que criamos. Diante disso, uma pergunta norteia a nossa reflexão: será que não faríamos a mesma coisa quando descrevemos uma série de casos sobre a nossa experiência em relação a alguma doença?

Percebo, então, que devo ser mais cauteloso na minha próxima aula e menos exigente quando assistir a uma palestra. Afinal, quantas vezes apresentei detalhes de casos raros e fui traído por essa armadilha?

Portanto, reconhecer que a nossa consciência é limitada, não sendo capaz de captar todas as informações já é dar um importante passo. Pensando, assim, sobre esses lapsos de memória, podemos compreender como as histórias mudam com o passar das gerações. Nesse caso, acho melhor eu parar por aqui, antes que os meus próximos alunos comecem a duvidar que eu tenha sido um bom jogador de futebol na escola. Tenho muitas testemunhas, inclusive algumas que não me viram jogar. Deixemos que a lenda sobreviva ao tempo!

 

Leitura Complementar:

1- Mlodinow, L. Subliminar – Como o inconsciente influencia nossas vidas. Rio de Janeiro, 1ed, 2013.

 

 

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O efeito halo e o efeito manada: como evitá-los nas ciências do diagnóstico?

O efeito halo é dos equívocos mais comuns no comportamento humano. Criado por Edward Thorndike, psicólogo norte-americano, ele é usado para explicar como os seres humanos têm a tendência de tirar conclusões, tomando como referência um único elemento. De modo geral, o efeito halo interfere na forma como fazemos julgamentos (de pessoas, objetos ou produtos), quando escolhemos um aspecto em detrimento de outros, podendo contaminar a análise final.  Apenas para ilustrar, quando alguém é selecionado para realizar uma tarefa, qualquer característica (física ou comportamental) desse indivíduo pode levar os avaliadores a fazerem inferências a seu respeito. Muitas vezes, esquecemos que avaliar somente uma habilidade, não indica, necessariamente, que uma pessoa está apta para realizar tal tarefa. Na perspectiva de Daniel Kahneman, o efeito halo prejudica reuniões e debates, porque quem fala primeiro influencia os demais. Como consequência dele, surge o efeito manada. Este ocorre quando nossos instintos nos levam a agir de forma coletiva, repetindo ações e decisões de um grupo. Essa tendência comportamental pode ser vista, em muitos setores, especialmente, no mercado de ações.

Mas, voltemos para a nosso campo de atuação, para refletirmos sobre a influência dos efeitos halo e manada em nossas decisões diagnósticas. Agora, imagine um grupo de especialistas analisando um interessante caso de histopatologia ou clínico. Como “a primeira impressão é a que fica”, quando uma característica marcante é observada na microscopia (ou no quadro clínico) da doença, ela tende a estimular o nosso cérebro a chegar à conclusões precipitadas. Isso ocorre porque começamos a buscar outros dados que sustentem a hipótese levantada. Assim, quando o primeiro especialista emite juízo sobre o caso, a tendência é que os demais sejam influenciados, em especial, se quem fala primeiro for autoridade no assunto. Com isso, se não tivermos cautela em buscar outras evidências que refutem a primeira hipótese, corremos o risco, assim, de forma consensual, de chegar a um diagnóstico precipitado, resultante do efeito manada. Esse pode ser verdadeiro ou apenas um equívoco coletivo!

Como evitar os efeitos halo e manada na prática de diagnósticos?

Em tese, a tarefa mais difícil é manter a mente aberta e ponderar as diferentes possibilidades.  Além disso, devemos lembrar que a primeira opinião emitida pode [sim] criar atalhos para acertos ou erros de um grupo. Isso ocorre porque temos medo do isolamento ou a necessidade de adequar o nosso comportamento e opinião às ações do grupo, o que, naturalmente, enfraquece o ímpeto de emitirmos julgamentos próprios.

Particularmente, não é difícil, discorrer sobre esses efeitos, já que que eles também me acompanham. Para os meus alunos, deixo as seguintes sugestões: estudem muito, não percam a habilidade de ouvir as pessoas e mantenham o olhar sensível para perceber todas as variáveis!

 

Observação: A foto utilizada para a apresentação desse post é um exemplo do efeito halo (o diagnóstico correto foi angiossarcoma). Eu induzi meus colegas a um erro!

 

Leitura Complementar:

1- Kahneman D. Rápido e devagar – Duas formas de pensar. 1 ed., 2012.

2- Hararia YN. Sapiens – Uma breve história da humanidade. 1 ed. , 2015.

 

 

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O viés da disponibilidade no diagnóstico bucal e na vida!

No livro, “Rápido e Devagar: duas formas de pensar,” do ganhador do Prêmio Nobel de Economia Daniel Kahneman, encontramos um exemplo interessante sobre a heurística da disponibilidade. Reunido com um grupo de pessoas, o autor levantou a seguinte hipótese: se uma palavra aleatória fosse retirada da língua inglesa, seria mais provável que “K” fosse a primeira ou a terceira letra dessa palavra? Curiosamente, o resultado mostrou que as pessoas que falam inglês são capazes de se lembrar mais do primeiro caso (de palavras que iniciam com “k” [kitchen, keep, etc.]) do que o segundo (palavras como ask, Peking, etc.), já que a maioria das respostas foi à primeira alternativa, mostrando que os participantes superestimaram o número de palavras que começam com “k” e subestimaram aquelas em que “k” aparecia como terceira letra. De acordo com o autor, isso ocorre porque tradicionalmente respondemos as situações usando aquilo que está disponível em nossa mente, embora em um texto típico, a tendência é encontrar mais palavras com “K” na terceira posição.

Voltando ao Diagnóstico Bucal, a heurística da disponibilidade também está presente em nossa tomada de decisões diárias. De maneira interessante, casos incomuns do cotidiano ficam registrados em nossa mente e geralmente são utilizados para inferir sua frequência, deixando de lado o número real de todas as situações vivenciadas.

Tomemos o líquen plano como um exemplo prático em nossa análise. Quando acompanhamos um grupo de pacientes acometidos por essa lesão, observamos que os casos em que há transformação maligna tendem a ser mais registrados do que os outros. O que mostra que somos propensos a superestimar a malignização nessas lesões. Com isso, não quero dizer que o líquen plano não seja uma doença cancerizável; existem casos bens documentados na literatura mostrando isso. Mas, o exemplo citado evidencia que a nossa capacidade de avaliar o risco tende a ser contaminada pelo viés da disponibilidade.

É interessante observar que, o viés da disponibilidade pode ser identificado em situações pedagógicas nas universidades. Quando estudantes participam de uma aula sobre doenças infecciosas, por exemplo, vários aspectos sobre esses processos patológicos, tais como sinais e sintomas, são apresentados. Notamos que, se o enfoque da aula for à exposição de casos raros, bem como os sintomas marcantes da doença, como a dor aguda na gengivite necrosante aguda (GUN), havendo, posteriormente, atividade clínica, vamos nos deparar com alguns comportamentos curiosos. Se o primeiro paciente atendido relatar dor, a hipótese de GUN será, provavelmente, considerada como a principal, embora seja mais rara do que a afta comum. Portanto, como professores, devemos estar atentos à heurística da disponibilidade em nossa prática pedagógica. É incrível observar que existem tão poucos textos sobre esse assunto em nossa área.

De forma geral, o viés da disponibilidade está presente na saúde, na economia, nos negócios, no sistema judiciário, na educação, na mídia, etc. Sua marcante e rotineira presença pode influenciar o nosso comportamento. Reconhecê-lo é essencial para que você não se torne uma vítima, dessa armadilha que contamina as nossas tomadas de decisões diárias!

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O que “A Lenda do Cisne Negro” tem a nos ensinar sobre Diagnóstico Bucal?

Depois de alguns anos de prática, em Estomatologia e Patologia Bucomaxilofacial, comecei a questionar certos conceitos que influenciavam as minhas decisões no diagnóstico e tratamento das doenças. Recentemente, fui despertado para a importância desse assunto, após ler textos sobre a forma como tomamos decisões no cotidiano. E, fiquei ainda mais surpreso em ver como isso afeta a nossa vida profissional! Erros cognitivos na tomada de decisões é um tema pouco discutido (ou praticamente ignorado) na Medicina, Odontologia e demais áreas da saúde. Por isso, nesse texto, abordarei: “A Lenda do Cisne Negro”.

Quantas vezes buscamos padrões de comportamento clínico para variantes ou tipo raros de tumores, mas nos esquecemos de que alguns dos eventos encontrados são apenas aleatórios. Quando ignoramos a lei dos pequenos números, somos inclinados a predições equivocadas. Os padrões que foram encontrados nas amostras podem ser apenas consequência de eventos aleatórios. Somente através de um grande número de amostras, conseguiremos identificar a aleatoriedade ou não desses eventos.

Contudo, eventos aleatórios podem ocorrer e são, algumas vezes, imprevisíveis.

Lembremos, então, “A Lenda do Cisne Negro”, quando os primeiros colonizadores ingleses chegaram à Austrália e foram surpreendidos com a presença de Cisnes Negros, já que, na época, acreditava-se que todos os cisnes fossem brancos. Eventualmente, uma situação como essa ocorre na Medicina e Odontologia. E, embora aleatória, ela é simplesmente inexplicável.

Quando vemos, por exemplo, um paciente com cisto radicular e, poucos meses depois, ele desenvolve um carcinoma de células escamosas na mucosa oral, imediatamente, buscamos padrões para conectar esses eventos: um na mucosa e outro intraósseo. Contudo, a hipótese mais provável é de que eles sejam: aleatórios. Se um segundo caso, porventura, for descrito na literatura, assumimos depressa uma relação de causa e efeito para esses episódios. Mas, muitas vezes, não analisamos bem estas questões. Afinal, quantos eventos coincidentes são encontrados durante o exame clínico de pacientes ou nos exames histopatológicos? Quantas vezes buscamos padrões para essas ocorrências, desprezando a simples coincidência do fato? Quantas vezes, um achado microscópico raro em um tumor (ou doença) pode ser, por exemplo, mero produto do acaso, sem qualquer significado clínico ou biológico. Fato é que, buscamos estabelecer relação causal para tudo que encontramos na nossa prática clínica.

Na figura desse artigo, mostro a imagem de um paciente que apresentava tórus palatino e líquen plano no mesmo local. Nesse caso, a nossa mente deve estar aberta às diferentes possibilidades, sendo capaz de reconhecer se há alguma ou, simplesmente, nenhuma associação entre elas.

Portanto, quando estiver revendo os dados clínicos, radiográficos e microscópicos de uma doença incomum, lembre-se de considerar “A Lenda do Cisne Negro.” Não tire conclusões precipitadas, estabelecendo relações de causa e efeito, nem ignore a lei dos pequenos números. Nesse caso, sugiro um exercício que, às vezes, reconheço ter dificuldade em seguir. Ao analisar uma hipótese, comece pelas evidências que não corroboram. Não se prenda somente àqueles que confirmam as suas ideias.

Fazer ciência vai muito além da publicação de um artigo!

O mundo é não-linear. Por que a ciência seria diferente?

Pense nisso!

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Tórus palatino associado com liquen plano

Figura- Imagem clínica de tórus palatino e líquen plano no palato duro. Dois eventos ao acaso ocorrendo simultaneamente.

 

Leitura Complementar:

1- Taleb N. A Lógica do Cisne Negro. 19 ed, 2018.

 

 

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