Melanócitos na mucosa oral? Por que eles estão ali?

Os melanócitos são células responsáveis pela produção de melanina e têm a função principal de absorver a radiação ultravioleta gerada pela exposição solar. Embora sejam encontradas comumente na pele, essas células estão também presentes nas mucosas: oral, nasal, faríngea, laríngea e esofágica superior. Esse achado nos leva a pensar na seguinte questão: se não há exposição direta à radiação solar nesses locais, o que os melanócitos estão fazendo na mucosa oral? Nesse post, aprofundaremos mais sobre esse assunto.

Boa parte do que sabemos sobre a função de melanócitos vem de fontes de estudos da sua ocorrência em pele. Sabemos que os melanócitos de boca são metabolicamente menos ativos do que os de pele. Por outro lado, sob a ação de fatores hormonais, inflamação ou trauma, eles podem se tornar mais ativos. Os melanócitos estão aderidos aos queratinócitos, por meio de junções celulares, envolvendo as moléculas caderinas-E. Como, geralmente, essa molécula de adesão celular (caderina-E) suprime a proliferação de melanócitos, quando há mudança na sua expressão para o tipo caderina-N, induzida por eventos traumáticos no microambiente, ocorre a proliferação de melanócitos. Esse mecanismo explica, por exemplo, a presença aumentada de melanócitos em todas as camadas celulares no melanoacantoma, lesão pigmentada que pode ser induzida por trauma.

 

Como identificar um melanócito na microscopia?

Nosso treinamento em Patologia é fazer o diagnóstico de doenças. Entretanto, reconhecer o melanócito em uma situação normal é importante para interpretarmos modificações quanto ao seu número, alterações morfológicas celulares ou quanto à sua distribuição no epitélio.  Os melanócitos estão geralmente localizados na camada basal e apresentam citoplasma róseo (ou cinza) que fica “preso” ao redor do núcleo. Além disso, é importante salientar que os espaços vazios, por vezes, com aparência vacuolar, na periferia, são apenas artefatuais e podem apresentar aspecto de “aranha” (Figura 1). A melanina, quando presente em queratinócitos, se acumula sobre o núcleo no lado voltado para a superfície externa da mucosa, formando, assim, um “guarda-chuva” ou “chapéu”.

 

Imagem microscópica de um melanócito na mucosa oral

 

Figura 1- Imagem microscópica mostrando melanócito no revestimento epitelial. Os melanócitos exibem citoplasma róseo ou cinza “preso” ao redor do núcleo (seta vermelha). Na parte mais externa, observamos espaços vazios, artefatuais, por vezes, com aparência vacuolar.

 

queratinócito

 

Figura 2- Queratinócitos contendo melanina. Nos queratinócitos, a melanina se acumula sobre o núcleo no lado voltado para a superfície externa da mucosa, formando, assim, um “guarda-chuva” ou “chapéu”.

 

 

Funções fisiológicas dos melanócitos e da melanina

É importante dizer que a coloração da pele e da mucosa oral, em condições fisiológicas, não é determinada pelo número de melanócitos, mas, principalmente pela sua atividade melanogênica. A melanina é sintetizada em melanossomos e um grupo de enzimas (tirosinases) participa desse processo. O número de melanossomos no interior de melanócitos, o tipo de melanina, bem como a eficiência no processo de sua transferência dessas organelas para as células epiteliais vizinhas desempenham papel importante na coloração da mucosa. Assim sendo, as alterações no número e distribuição de melanócitos, além de mudanças na sua atividade melanogênica, podem levar às modificações na coloração dos tecidos. Em relação ao tipo de melanina, os melanossomos podem conter, ainda, a feomelanina ou a eumelanina, sendo que esse último subtipo confere uma coloração mais escura para os tecidos. Mas, vale lembrar que a função dos melanócitos e da melanina não para por aí!

Outra característica marcante é que, os melanossomos contêm todas as proteínas e enzimas necessárias para a biossíntese de melanina. Na medida em que sofrem maturação, eles são transportados por microtúbulos para a superfície dendrítica dos melanócitos, quando, então, são transferidos para os queratinócitos. Nessas células, a melanina se acumula no núcleo, formando uma capa de proteção do DNA nuclear dos queratinócitos contra as radiações ultravioletas. Com a transferência dos melanossomos para células epiteliais, os melanócitos são capazes de influenciar atividades funcionais nos queratinócitos e, esses, por sua vez, por ação parácrina, podem secretar produtos que regulam a atividade melanocítica.

Além disso, os melanócitos apresentam função importante no nosso sistema imune inato. Eles podem apresentar antígenos através do complexo MHC-II e produzir citocinas que ativam linfócitos CD4+, inibindo, assim, o crescimento microbiano local. Como eles expressam genes que codificam hormônios, como o hormônio adrenocorticotrófico (ACTH), endorfinas, hormônio estimulante de melanócitos (MSH) e melanocortina, entre outros, uma função neuroendócrina também deve ser considerada.

No que diz respeito à melanina, destacamos suas diversas funções fisiológicas. Quando ela é produzida, existe geração de radicais livres que podem provocar danos ao DNA das células. Paradoxalmente, a própria melanina tem a capacidade de neutralizar os radicais livres formados pela microbiota oral. Com isso, ela possui tanto efeitos antioxidantes como propriedades citotóxicas. Por último, ela pode também neutralizar enzimas e produtos tóxicos derivados de bactérias.

Os melanossomos também contribuem para as nossas defesas. Eles contêm enzimas lissossomais que degradam bactérias, quando microrganismos são internalizados por melanócitos. Enquanto alguns produtos intermediários da melanogêsese, como as quinonas e semiquinonas, são tóxicos e mutagênicos, outros, como a L-dopa, inibem a produção de citocinas pró-inflamatórias. De outra parte, na medida que queratinócitos contendo melanina ascendem gradativamente para as camadas superiores do revestimento epitelial, as membranas dos seus melanossomos sofrem degradação e liberam a melanina. Essa “poeira” de melanina, no interior dos queratinócitos, emaranhada com os filamentos de queratina das células descamadas, inativa produtos químicos patogênicos e toxinas microbianas.

Redigindo este texto, recordei-me de quando iniciei os meus estudos na pós-graduação. Naquela época eu pensava nos melanócitos apenas como células produtoras de melanina e que essas, por sua vez, teriam como única função a proteção contra as radiações ultravioletas. Hoje, ainda, não sei o real significado de todos esses mecanismos mencionados dessas células fascinantes para a fisiologia oral. Mas, de uma coisa estou certo, com o passar do tempo, tenho notado que existem muitos segredos, por trás, até mesmo, das células que geralmente pouco enxergamos no exame microscópico.

 

Melanócitos na mucosa oral? Por que eles estão ali?

Por último, caro leitor, lamento dizer que, hoje, tenho mais dúvidas do que respostas, mas, saiba que a sua opinião, neste site, é muito importante, pois pode instigar e inspirar jovens pesquisadores. Afinal de contas, a ciência é um movimento contínuo!

 

Leitura complementar:

1- Buchner A, Merrel PW, Carpenter WM. Relative frequency of solitary melanocytic lesions of the oral mucosa. J Oral Pathol Med 2004;33:550-557.

2- Feller L, Masilana A, Khammissa RAG, Altini M, Jadwat Y, Lemmer J. Melanin: the biophysiology of oral melanocytes and physiological oral pigmentation. Head Face Med 2014:10-8.

3- Ma Y, Xia R, Ma X, Judson-Torres RL, Zeng H. Mucosal Melanoma: Pathological Evolution, Pathway Dependency and Tartet Therapy. Front Oncol 2021;11:702287.

4- Rosebush MS, Briody AN, Cordell KG. Black and brown: Non-neoplastic pigmentation of the oral mucosa. Head Neck Pathol 2019;13:47-55.

 

 

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Paulo Tambasco
2 anos atrás

Excelente, Ricardo!

Ivana Diniz
2 anos atrás

Melanócitos são células que nos interessam bastante no contexto do reparo tecidual. Derivam de células da crista neural, assim como alguns precursores gliais: as células de Schwann. Parece que melanócitos podem se diferenciar, inclusive, a partir de precursores gliais em nervos periféricos em desenvolvimento. Temos estudado esses componentes gliais em diferentes modelos experimentais dentro e fora da odontologia, e sua exposição enriquece muito nossa percepção. Muito obrigada, Ivana Diniz 🙂