O viés da disponibilidade no diagnóstico bucal e na vida!

No livro, “Rápido e Devagar: duas formas de pensar,” do ganhador do Prêmio Nobel de Economia Daniel Kahneman, encontramos um exemplo interessante sobre a heurística da disponibilidade. Reunido com um grupo de pessoas, o autor levantou a seguinte hipótese: se uma palavra aleatória fosse retirada da língua inglesa, seria mais provável que “K” fosse a primeira ou a terceira letra dessa palavra? Curiosamente, o resultado mostrou que as pessoas que falam inglês são capazes de se lembrar mais do primeiro caso (de palavras que iniciam com “k” [kitchen, keep, etc.]) do que o segundo (palavras como ask, Peking, etc.), já que a maioria das respostas foi à primeira alternativa, mostrando que os participantes superestimaram o número de palavras que começam com “k” e subestimaram aquelas em que “k” aparecia como terceira letra. De acordo com o autor, isso ocorre porque tradicionalmente respondemos as situações usando aquilo que está disponível em nossa mente, embora em um texto típico, a tendência é encontrar mais palavras com “K” na terceira posição.

Voltando ao Diagnóstico Bucal, a heurística da disponibilidade também está presente em nossa tomada de decisões diárias. De maneira interessante, casos incomuns do cotidiano ficam registrados em nossa mente e geralmente são utilizados para inferir sua frequência, deixando de lado o número real de todas as situações vivenciadas.

Tomemos o líquen plano como um exemplo prático em nossa análise. Quando acompanhamos um grupo de pacientes acometidos por essa lesão, observamos que os casos em que há transformação maligna tendem a ser mais registrados do que os outros. O que mostra que somos propensos a superestimar a malignização nessas lesões. Com isso, não quero dizer que o líquen plano não seja uma doença cancerizável; existem casos bens documentados na literatura mostrando isso. Mas, o exemplo citado evidencia que a nossa capacidade de avaliar o risco tende a ser contaminada pelo viés da disponibilidade.

É interessante observar que, o viés da disponibilidade pode ser identificado em situações pedagógicas nas universidades. Quando estudantes participam de uma aula sobre doenças infecciosas, por exemplo, vários aspectos sobre esses processos patológicos, tais como sinais e sintomas, são apresentados. Notamos que, se o enfoque da aula for à exposição de casos raros, bem como os sintomas marcantes da doença, como a dor aguda na gengivite necrosante aguda (GUN), havendo, posteriormente, atividade clínica, vamos nos deparar com alguns comportamentos curiosos. Se o primeiro paciente atendido relatar dor, a hipótese de GUN será, provavelmente, considerada como a principal, embora seja mais rara do que a afta comum. Portanto, como professores, devemos estar atentos à heurística da disponibilidade em nossa prática pedagógica. É incrível observar que existem tão poucos textos sobre esse assunto em nossa área.

De forma geral, o viés da disponibilidade está presente na saúde, na economia, nos negócios, no sistema judiciário, na educação, na mídia, etc. Sua marcante e rotineira presença pode influenciar o nosso comportamento. Reconhecê-lo é essencial para que você não se torne uma vítima, dessa armadilha que contamina as nossas tomadas de decisões diárias!

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O que “A Lenda do Cisne Negro” tem a nos ensinar sobre Diagnóstico Bucal?

Depois de alguns anos de prática, em Estomatologia e Patologia Bucomaxilofacial, comecei a questionar certos conceitos que influenciavam as minhas decisões no diagnóstico e tratamento das doenças. Recentemente, fui despertado para a importância desse assunto, após ler textos sobre a forma como tomamos decisões no cotidiano. E, fiquei ainda mais surpreso em ver como isso afeta a nossa vida profissional! Erros cognitivos na tomada de decisões é um tema pouco discutido (ou praticamente ignorado) na Medicina, Odontologia e demais áreas da saúde. Por isso, nesse texto, abordarei: “A Lenda do Cisne Negro”.

Quantas vezes buscamos padrões de comportamento clínico para variantes ou tipo raros de tumores, mas nos esquecemos de que alguns dos eventos encontrados são apenas aleatórios. Quando ignoramos a lei dos pequenos números, somos inclinados a predições equivocadas. Os padrões que foram encontrados nas amostras podem ser apenas consequência de eventos aleatórios. Somente através de um grande número de amostras, conseguiremos identificar a aleatoriedade ou não desses eventos.

Contudo, eventos aleatórios podem ocorrer e são, algumas vezes, imprevisíveis.

Lembremos, então, “A Lenda do Cisne Negro”, quando os primeiros colonizadores ingleses chegaram à Austrália e foram surpreendidos com a presença de Cisnes Negros, já que, na época, acreditava-se que todos os cisnes fossem brancos. Eventualmente, uma situação como essa ocorre na Medicina e Odontologia. E, embora aleatória, ela é simplesmente inexplicável.

Quando vemos, por exemplo, um paciente com cisto radicular e, poucos meses depois, ele desenvolve um carcinoma de células escamosas na mucosa oral, imediatamente, buscamos padrões para conectar esses eventos: um na mucosa e outro intraósseo. Contudo, a hipótese mais provável é de que eles sejam: aleatórios. Se um segundo caso, porventura, for descrito na literatura, assumimos depressa uma relação de causa e efeito para esses episódios. Mas, muitas vezes, não analisamos bem estas questões. Afinal, quantos eventos coincidentes são encontrados durante o exame clínico de pacientes ou nos exames histopatológicos? Quantas vezes buscamos padrões para essas ocorrências, desprezando a simples coincidência do fato? Quantas vezes, um achado microscópico raro em um tumor (ou doença) pode ser, por exemplo, mero produto do acaso, sem qualquer significado clínico ou biológico. Fato é que, buscamos estabelecer relação causal para tudo que encontramos na nossa prática clínica.

Na figura desse artigo, mostro a imagem de um paciente que apresentava tórus palatino e líquen plano no mesmo local. Nesse caso, a nossa mente deve estar aberta às diferentes possibilidades, sendo capaz de reconhecer se há alguma ou, simplesmente, nenhuma associação entre elas.

Portanto, quando estiver revendo os dados clínicos, radiográficos e microscópicos de uma doença incomum, lembre-se de considerar “A Lenda do Cisne Negro.” Não tire conclusões precipitadas, estabelecendo relações de causa e efeito, nem ignore a lei dos pequenos números. Nesse caso, sugiro um exercício que, às vezes, reconheço ter dificuldade em seguir. Ao analisar uma hipótese, comece pelas evidências que não corroboram. Não se prenda somente àqueles que confirmam as suas ideias.

Fazer ciência vai muito além da publicação de um artigo!

O mundo é não-linear. Por que a ciência seria diferente?

Pense nisso!

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Tórus palatino associado com liquen plano

Figura- Imagem clínica de tórus palatino e líquen plano no palato duro. Dois eventos ao acaso ocorrendo simultaneamente.

 

Leitura Complementar:

1- Taleb N. A Lógica do Cisne Negro. 19 ed, 2018.

 

 

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Por que a biópsia pode não ser representativa da lesão?

O diagnóstico bucal reúne todo o conjunto de especialidades comprometidas na abordagem do paciente, dos exames laboratoriais e complementares utilizados para o estudo do caso. Por que uma biópsia pode não ser representativa da lesão?

Para responder a essa pergunta, é possível apresentar vários exemplos, mas utilizaremos o líquen plano para ilustrar uma situação clínica. O padrão clínico rendilhado, apresentando lesões, usualmente, bilaterais, na forma de estrias, com (ou sem) áreas erosivas, é característico do líquen plano (Figura 1). As áreas brancas visualizadas, clinicamente, resultam do processo de queratinização do epitélio, que surge em resposta a reação inflamatória no tecido conjuntivo subjacente. Entretanto, a queratina formada, durante o exame, decorre de um processo iniciado há semanas (ou meses) – e não significa que no momento da biópsia, o processo inflamatório ainda esteja presente. Por esse motivo, mesmo que a biópsia seja realizada no local das estrias, algumas vezes, o infiltrado inflamatório em banda subepitelial, importante elemento para o diagnóstico patológico, pode não está presente no momento do procedimento. Com isso, o quadro histopatológico será de hiperqueratose, embora, clinicamente, a doença, provavelmente, seja líquen plano. O clínico deve julgar se existe necessidade de realizar outra biópsia, diante do quadro histopatológico, embora não seja sugestivo da doença, pode ser encontrado, em razão das questões apontadas acima.

 

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Figura 1: Exemplo de líquen plano do tipo reticular

 

Outra questão importante é o local que se escolhe para fazer a biópsia, já que, os fenômenos imunopatológicos envolvidos na formação do líquen plano variam de intensidade, com momentos de grande atividade, que levam a destruição parcial do epitélio e a formação de áreas eritematosas, que são intercalados a outros menos severos, que estimulam a formação de queratina.

Diante disso, na hipótese do paciente apresentar áreas erosivas e outras hiperqueratóticas com padrão rendilhado, qual dessas se devem escolher? Particularmente, acredito que fazendo a biópsia na interface, entre as duas áreas (erosivas e estriadas) é possível observar os diferentes espectros do processo imunopatológico, aumentando a chance de se obter uma amostra mais representativa.  Fica claro que, o exemplo citado, é válido para os casos em que o paciente apresenta as duas formas clínicas (Figura 2).

Espero que esse texto tenha contribuído para esse debate. Compartilhe a sua opinião e continue acessando o nosso blog e site!

 

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Figura 2: Líquen plano erosivo. As setas indicam áreas erosivas intercaladas por outras exibindo linhas hiperqueratóticas. Essas áreas são de escolha para biópsia nesses casos.

 

 

 

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Por que algumas lesões da mucosa oral apresentam a coloração azul? Compreender o efeito Tyndall pode nos ajudar no diagnóstico!

No cotidiano da Estomatologia, encontramos diversas lesões na mucosa oral que apresentam coloração azulada, das quais mencionamos: a mucocele, a rânula (Figura 1) e o carcinoma mucoepidermoide. Mas, por qual motivo essas condições patológicas são azuladas? Em algum momento, você já pensou que o motivo dessa coloração pode ser o mesmo que explica o azul do céu e dos oceanos? Sim, meu caro leitor, as respostas para essas perguntas estão mais interligadas do que imaginamos! Embarque comigo nessa breve reflexão.

 

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Figura 1- O efeito Tyndall explica a coloração azul da rândula.

 

Para responder essa intrigante dúvida, precisamos compreender um fenômeno da física denominado de efeito Tyndall. Mas, primeiro, vamos voltar à físico-química para recordarmos o que é um coloide. Os coloides são partículas com tamanho compreendido entre 1 a 1000 nanômetros e que não se sedimentam sob a ação da gravidade. Eles podem ser líquidos (ex: leite), gasosos (ex: fumaça) ou sólidos (ex: cristal de rubi). Sabendo disso, agora podemos falar sobre efeito Tyndall.

O efeito Tyndall é a dispersão da luz por partículas em um coloide ou suspensão fina. A intensidade da luz dispersa é inversamente proporcional ao comprimento de onda. Como o comprimento de onda da luz azul é menor do que o comprimento de onda das luzes: verde, amarelo, laranja e vermelha; a luz azul é dispersa em maior intensidade em uma solução coloidal. Por isso, quando olhamos para o céu, a cor azul, nada mais é que, o resultado da passagem da luz branca solar pela atmosfera, que é dispersa pelas partículas atmosféricas, suspensas no ar.

Muito bem, mas você deve está se perguntando o que isso tem a ver com o nosso trabalho na Estomatologia? Pois bem, os cistos de glândula salivar citados acima podem ser usados como exemplo. Como eles apresentam no seu conteúdo não somente água, mas diversas partículas suspensas, o efeito Tyndall poderá ser notado. A saliva é uma mistura heterogênea que pode ser considerada como um coloide líquido. Quando examinamos um paciente com rânula ou mucocele, conforme a profundidade e a quantidade de solução coloidal acumulada, a coloração azul poderá ser notada. Como mencionada anteriormente, essa coloração se dá, por causa da dispersão da luz azul que tem menor comprimento de onda.

Para finalizar, quero destacar outro aspecto importante do efeito Tyndall em nossa prática. Todas as vezes que estamos diante de uma lesão tumoral no palato, as neoplasias de glândula salivar devem ser consideradas no diagnóstico diferencial. Se a cor azul estiver presente, lembre-se do efeito Tyndall e, por sua vez, da possível presença de muco no interior da lesão. O que lhe ajudará a considerar fortemente a hipótese de carcinoma muco-epidermoide (Figura 2). Essa mesma observação pode ser feita para uma lesão na região retromolar, embora, nessa área, em razão da maior dificuldade de visualização ou menor quantidade de coloide, o efeito Tyndall pode não ser evidente.

 

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Figura 2- O carcinoma mucoepidermoide pode apresentar a cor azulada em razão do efeito Tyndall.

 

Portanto, todas as vezes que você estiver diante de uma lesão de coloração azul, lembre-se desse efeito óptico da dispersão da luz. O físico britânico John Tyndall (1820-1893) não imaginava a importância dos seus achados para a prática da Estomatologia, mas hoje sabemos disso!

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Preciso incluir tecido normal na biópsia?

Preciso incluir tecido normal na biópsia? Essa é uma pergunta curiosa e frequente em nosso cotidiano.

“É necessário incluirmos o tecido normal para o diagnóstico histopatológico?” Aproveito esse espaço para expor e trazer algumas reflexões sobre o assunto.

Para responder essa pergunta, precisamos, antes, contextualizar algumas situações. Vejamos, por exemplo, um caso clínico em que a hipótese principal é de carcinoma de células escamosas (Figuras 1 e 2).

O diagnóstico do carcinoma de células escamosas está ancorado em um conjunto de características que mostra basicamente a invasão do tecido conjuntivo pelas células neoplásicas.

A presença de tecido normal nesses casos é completamente dispensável para o diagnóstico. Entretanto, muitas vezes, o clínico realiza a biópsia próxima do tecido normal em razão da facilidade de se realizar a sutura.

Neoplasias são formadas pelo crescimento desordenado de células, rompendo o equilíbrio entre o estroma (tecido conjuntivo, no exemplo do carcinoma) e o parênquima que é formado pelas células tumorais. Esse desarranjo leva a uma modificação na consistência, na coloração e na vascularização da amostra removida para o exame.  Como consequência disso, o material coletado, no caso o carcinoma, muitas vezes, é friável, tornando difícil a sutura dos tecidos, após a remoção para análise microscópica. Por esse motivo, é interessante realizar a biópsia em um local mais próximo do tecido normal, embora isso não queira dizer que precisamos necessariamente do tecido normal para o diagnóstico.

 

Imagem de carcinoma de células escamosas no lábioImagem microscópica do carcinoma de células escamosas de boca

Figuras 1 e 2: Observe a presença de úlcera com bodas em rolete do carcinoma de células escamosas de lábio inferior. Na imagem microscópica temos o revestimento da mucosa bucal e mais profundamente notamos a presença de lençóis de células do carcinoma. Como a biópsia foi realizada na periferia, foi possível observar o revestimento da mucosa. Entretanto, para o diagnóstico, apenas a presença do componente neoplásico é necessário.

 

Apesar da presença de tecido normal ser dispensável em grande parte das situações clínicas do cotidiano, é importante destacarmos algumas exceções.

As doenças imunomediadas, como pênfigo vulgar ou os penfigóides, configuram uma situação distinta. Nessas enfermidades, o processo patológico leva a formação de uma bolha, intra ou subepitelial, dificultando a realização da biópsia e sua posterior análise pelo patologista. Nas regiões mais próximas do tecido normal, geralmente, existe maior preservação da relação epitélio/conjuntivo e a fragmento obtido terá a sua integridade mais bem preservada. Nesses casos, a biópsia próxima do tecido normal facilitará a visualização da possível fenda responsável pela lesão bolhosa, facilitando o diagnóstico. Nas áreas mais centrais da lesão, como é possível que já tenha ocorrido à perda do revestimento epitelial, a possibilidade de uma úlcera associada com processo inflamatório inespecífico é uma realidade. Isso traz frustação, tanto para o clínico como para o paciente, exigindo a repetição do exame.

Em resumo, a inclusão de tecido normal na biópsia deve-se muito mais a algumas peculiaridades, como as descritas acima, do que propriamente a necessidade de tecido normal para o diagnóstico.

Espero que esse texto tenha contribuído para o debate. Compartilhe a sua opinião e continue acessando o nosso blog e site!

 

 

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